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DE PEDRAS A PÁSSAROS

O diálogo que se pode estabelecer entre as obras de Anna Helena Cazzani e Bel Barcellos não se reduz à mera feição. Dentre as espacialidades realizadas pelas artistas – sobre papel, tecido ou no espaço circundante, por meio de borracha, tinta, grafite ou linha de bordar –, podemos observar: abstração e obliquidade, em Cazzani; figuração e perpendicularidade, em Barcellos; e em comum, nas duas, paralelismo. Portanto, se há similitudes em seus trabalhos, findamos por encontrá-las, justamente, nas diferenças existentes entre eles. 

Por certo, a linha presente no projeto poético de ambas nos indica direções. Porém, também, sentidos...  Sentidos que viabilizam a convivialidade harmoniosa de poéticas distintas, como é o caso da relação curatorial aqui almejada, em lugar de apresentá-las individualmente.

Vejam, experimentamos esteticamente direções e sentidos que sugerem conexões entre reinos: de pedras – pessoas e árvores – a pássaros. Ou simplesmente, entre o coração e a mente, por vieses (invisíveis, até). Em franca dualidade, num lapso, nossa fruição estrutura-se no chão; n’outro, se lança ao céu... num instante, se assegura na concretude da parede e, de repente, ultrapassa seu limite em fantasia ulterior... 

Todavia, ab ovo: linhas. Linhas cujas tramas se revelam capazes de fazerem formas prescindirem de tatilidade, à maneira de Anna Helena; e sentimentos, de palavras, ao modo de Bel.

Em recíproca visitação, seus fios oblíquos e cardinais tecem arquiteturas e cenas intangíveis, até. Abstrata e figurativamente, relacionam razão e sensibilidade, em tessituras espaciais geométricas, poligonais, inclusive. Planimétricas, ainda, definem planos diversos que se projetam no espaço (material ou mental), tanto de maneira purista, sob formas intervalares, segundo Cazzani; quanto dramática, por meio de retóricas imaginárias, conforme Barcellos. 

Percebem? Na relação entre as duas poéticas, não são simples espacialidades construídas e imaginadas que, em paralelo, se apresentam diante de nossos olhos. Mas sim, uma conversa de pulsões vivazes, feito alternância do binômio virilidade/feminilidade – quiçá, vocação de cada poética, respectiva e separadamente.  

Através dessa ideia e inspirados nos versos de Mia Couto, podemos imaginar experiências que registramos na alma, aprendendo a ser corpo enquanto iludem a morte na eternidade de lápides fabulares, contidas nas propostas de Anna e Bel, segundo nossa fantasia poética. Assim, de modo metafórico e respectivo, aquelas reminiscências repousariam: na trama solitária de ninhos ocos que jazem in natura, na malha estéril de cravos imantados e gravados em metal, no peso angular de pedras que empuxam e distendem tensões inanes e negras; ou, de outro modo, na leveza etérea de pontos que nos lançam à infinitude do revoar de pássaros; no pesponto equânime de telas que encenam equivalências conjugais; no bordado sereno da árvore-mulher de ramos inférteis; na costura delicada de quimeras e angústias personais desenhadas sobre papel etc... 

Entretanto, além das metáforas de finitude acima referidas, aquele suposto corpo se mostra igualmente interessado por outra ordem de liminaridade. Exercita-se numa simbiose de desenho e espaço, para a qual o vazio é sua expressão exata. Intervalo intrínseco à fruição e, antes, à concretude das obras. Referimo-nos àquelas que pendem do teto ao circunstancial ambiente da arquitetura. Àquelas que, de maneiras distintas, flertam com a gravidade física e emocional, como são exemplos as pedras pendulares de Anna e os lençóis espectrais de Bel. E ainda, ao campo instável presente na geometria artesanal de ambas: no caso desta, à precisão de recamos circulares; e daquela, à exatidão de matéria escura no branco do papel.

Por entre as linhas de Cazzani e Barcellos, experienciamos uma harmônica de beleza e lirismo, cuja frequência parece ressoar vacuidade. Vacuidade – aqui, bem entendido, não somente quanto a algo que é "vazio", mas sobretudo, na qualidade da interdependência necessária à existência das coisas. Reciprocidade pertinente ao conceito dessa curadoria que, a partir das obras das duas artistas aqui retratadas, tem por hipótese expográfica, a ser concretizada nessa exposição, um acordo poético, qual híbrido de densidade e leveza, concretude e imaterialidade.

Sonia Salcedo del Castillo

Agosto I 2019

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