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ANTIANATOMIA TROPICAL - LUCIANO FEIJÃO E ROSANA PAULINO

A Anatomia

O aniquilamento secular e ininterrupto da população negra brasileira, tanto nos seus aspectos físicos e econômicos, quanto na tentativa política-ideológica de manter ativo e atualizado o projeto moderno de branqueamento do país, continua sendo perpetuado através de postulados oriundos das ciências (na explicação de certos fenômenos sociais) e, por conseguinte, dos tratados de anatomia, como nas atribuições fenotípicas e conceitos de raça.

 

Tais tratados convertem por iguais todos os corpos, independente de seus traumas. Não indicam doenças, não propõem curas, não exprimem resistências. Estudos anatômicos afundam os sujeitos na impessoalidade mais vil, tornando-os disponíveis para que se prove toda e qualquer fundamentação negativa sobre si, sobre sua comunidade, sobre seu futuro. 

 

Ao final da escravidão brasileira o que se projetou foi a sistematização da eugenia enquanto política de Estado, ou seja, uma forma de racionalização que sedimentou o racismo como padrão de normalidade. A eugenia e as configurações anatômicas foram determinantes para subjugar uma “forma negra” (como na história da Vênus Negra e tantas outras). Evidenciar uma antianatomia é, portanto, sobressaltar o conceito de que exista uma força para além do aprisionamento dessa forma.

 

Se há um corpo negro por detrás da tragédia, é antianatômico. Se o corpo negro contempla o cenário de sua própria emancipação, certamente é antianatômico. Se a “mão anônima” modela de maneira universal uma razão escrava, a “mão manifesta” – contramão – desenha uma razão negra antianatômica. A luta da população negra será sempre torcida, desmembrada e antianatômica. 

 

Antianatomia é anti-fisionomia, é trabalho de investigação que, através dos desenhos de homens e mulheres negras, sugere um caminho de não-objetivação. É apostar nos vários planos desarmônicos que constituem os corpos e que, ao se sobreporem ao longo dos processos emancipatórios, não descartam planos anteriores… É o passado vivo no presente, é o espectro da subjetividade racista perpassando os que se consideram não-racistas. 

 

Os desenhos da série Antianatomia são de tendência “subcutânea”, assinalando tudo o que está sensivelmente debaixo da pele como músculos, nervos, ossos, sangue, tensões, desígnios. Também comprova que os corpos negros, neste contexto, não podem ser enquadrados em cânones, linhas diretrizes e métodos de abordagens mais genéricos e uniformizantes, pois precisam destruir toda a lógica que define a “lição de anatomia” clássica como medida do mundo, para dar lugar a uma dissecação que faça transbordar o sentido das lutas étnico-raciais locais.

 

Luciano Feijão

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O Paraíso

 

Em uma trajetória artística construída de forma coerente e marcada por notável  consistência, Rosana Paulino tem se dedicado em suas produções à reflexão sobre a  invisibilidade e o não reconhecimento dos negros, sobretudo, das mulheres. Em muitas  de suas obras o passado, seja através de fotografias de familiares ou por registros do  período colonial, parece ser o grande mote para entender as profundas ranhuras e feridas 

herdadas da escravidão que teimam a acompanhar a população negra até os dias de hoje.  

Na série Paraíso Tropical, o passado é evocado por Rosana Paulino por meio de imagens de mulheres escravizadas cujas lentes dos fotógrafos das colônias perpetuam em posições fixas e rígidas, descortinando quem detém o domínio sobre seus corpos. O  mesmo domínio torna-se evidente quando a artista aprisiona as mulheres em herbários,  simbolizando a necessidade da ciência de classificar e hierarquizar o mundo, o que se  estendeu aos povos de origem africana. 

Com grande sensibilidade, as mulheres apresentadas por Rosana Paulino não têm rosto,  no seu lugar fica um incômodo vazio. Ao remeter ao passado, esse vazio se faz metáfora  para o anonimato, para o esvaziamento da história individual de cada uma dessas  mulheres escravizadas. No presente, esse espaço vazio é como a projeção de um  espelho, onde as mulheres negras se veem e se reconhecem em uma imensa dor  compartilhada. 

Rosana Paulino não parece interessada apenas em impedir que a memória do período da  escravidão seja esquecida e apontar que esse longo e terrível momento da nossa história  esteve respaldado pela cientificidade. A artista almeja, sobretudo, denunciar como seus  nefastos desdobramentos sobrevivem e atuam no presente. E sugere que nos  perguntemos de quem e para quem é esse Paraíso Tropical.

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